Tem idéias que a gente tem de
repente, assim, do nada. Ninguém aprende a andar por teorias. Simplesmente um
dia andamos. As idéias são assim. Elas vêm, e ponto.
Acontece de variar de pessoa pra
pessoa o lugar onde se tem ideias.
Comigo esse lugar é o bar. Não
todo bar, mas só esse ou aquele. Digamos um ou dois, no máximo, e em certas
épocas. E depois passando talvez a ser aquele outro e mais este, de onde acabo
de sair faz pouco tempo, correndo para casa a fim de não perder a ideia, antes
de passá-la da cabeça para as letras.
Assim, daqui por diante, já é outro
quem fala, como falei até aqui eu, na primeira pessoa. Um outro que veio na ideia,
portanto é um pouco eu e um pouco outros, dos bares e de fora deles, que a vida
teve o capricho ou o despropósito de me fazer viver. Até logo ou até o fim da
historia dessa ideia de bar. Em tempo: mudo de assunto mais não de parágrafo,
para que o nosso conviva possa logo tomar a palavra já no próximo. E se vocês
acharem que o que vem por diante é uma historia dentro de outra história, não se
preocupem. É isso mesmo. Vejamos.
Peguei caminho da rua que nem
doido. Tinha acabado de brigar em casa, por besteira, e tava puto com a briga e
com a besteira.
Tomei fôlego e direção. Caminho
do bar. A coisa era de aborrecer até gente sem as idéias no lugar. Fui andando,
com o pensamento fuzilando. O que uma coisa tem haver com outra coisa? Uma
coisa é uma coisa, outra coisa...
Já no boteco, pedi uma.
Cumprimentei um e outro, que conhecia, e respirei um pouco de alívio. Mas
aquele pensamento não me largava. A briga por besteira, que já perecia que não
era tanta besteira assim. Uma coisa perdida foi achar justamente o motivo do
sumiço nos meus expedientes do escritório, que é como eu chamo o bar que gosto
de ir. Eu tava com muita raiva.
E continuei pensando. Se não
bastasse isso, ainda tive que ouvir uma coisa assim: você não tem um sentido na
vida! Sua filosofia é o bar! Ai não aguentei, e respondi, pensando que ia ter a
última palavra: Isso, minha filosofia é o bar! Qual o problema? Virei às costas
e ouvi: tá bom então. Conta ai como é essa filosofia. Ai foi que fiquei mais
bravo, porque não tinha uma resposta.
Tomei mais umas, conversei, ouvi
um monte de historias, e até esqueci um pouco do acontecido. Já lá pelo final
do expediente lembro que perguntei a alguém: sabe o que é uma filosofia? E tive
essa resposta: são pensamentos, explicações sobre o sentido da vida... Não é
que eu não tivesse na cabeça uma idéia dessas, claro que tinha, mas queria escutar
dos outros, que talvez ouvisse coisa mais funda do que já sei... Logo voltei
pra casa, já final de tarde, dia de domingo.
Não falei mais nada que fosse
ligado com a confusão. A noite chegou e tudo correu em paz, de acordo com isso
que chamam rotina, a vida vivida assim corrida e levada pelo tempo com as
coisas que a gente sempre tem que fazer.
Dia seguinte, a ideia voltou. Ia
cumprindo as tarefas do trabalho, e ela sempre lá: minha filosofia de vida...
Num estalo resolvi sair um pouco mais cedo do trabalho e passar numa biblioteca
pública antes do almoço.
Fui. Cheguei lá, entrei e falei
pra funcionária: quero ver livros de filosofia. E eu fui seguindo ela por
aqueles corredores cheios de livros que não acabavam mais. Num lugar ela parou,
virou pra mim e disse: a seção de filosofia está aqui. Que assunto ou autores o
senhor quer consultar? E eu disse: não sei, são tantos?! Ela insistiu em me
ajudar. Falou: diga o que o senhor procura que talvez eu consiga achar... Ai
enchi o peito e mandei: quero ler pra pensar e chegar numa filosofia minha...
E aquelas palavras saíram assim
meio dum jeito de doutor. E a moça olhou pra mim com cara de deboche e me
deixou lá no meio daquele labirinto. Eu não perdi a pose, passei a mão num livro
qualquer sobre filosofia, fiz a tal da ficha de empréstimo e me mandei pra casa
atrás da bóia.
Os dias foram passando. Lia
sempre um pouco nas andanças do ônibus, mas confesso que tive muitas dificuldades
com as idéias dos filósofos, no início. Mas fui lendo. O ônibus balançava e a
vista acompanhava a linha e o pensamento...
Um dia tive uma luz quase
filosófica. Entrei numa lan house e mandei ver: grandes filósofos e suas
idéias. E li bastante.
Depois pensei que podia encontrar
um jeito de aprender mais rápido as coisas da filosofia, pra ter conhecimento
que bastasse pra pensar e chegar a uma filosofia muito minha, e mostrar em casa
que eu tinha ideias sobre a vida. Pensei por dias e cheguei à conclusão de que
a filosofia, como qualquer trabalho, também devia de ter as suas coisas
próprias os seus jeitos de pensar organizar e fazer, trabalhar. Mas quais eram
essas coisas eu não sabia.
Não demorou até que sem querer li
no jornal a palavra: categoria. Era sobre futebol, mas não deu outra. Voltei na
lan e pronto. Logo achei uma batelada de respostas que tava procurando,
chamadas categorias filosóficas.
E não era pouca coisa: ser,
natureza, não ser, verdade, razão, tempo, espírito, matéria, ideia, tudo, nada,
princípio, fim, meios... A lista era grande, mas era coisa muito interessante,
que forçando um tanto a mente, se não pegava logo, depois vinha o entendimento,
ou pelo menos um pouco que fosse dele.
E continuei lendo o livro, e as
folhas que tinha imprimido, pensando cada dia mais. Até já sabia muita coisa,
mas como é que vai ser essa minha tal filosofia? Ainda não sabia. Insisti, e
comprei um dicionário pequeno pra ajudar com as palavras ditas técnicas.
De vez em quando a mulher
estranhava que eu não tava na sala vendo TV. Perguntava: tá fazendo o que ai no
quarto Silva? Vem pra cá ficar com a gente, dizia. Dali um pouco eu ia, mas
sempre que dava me empenhava na leitura e nos pensamentos.
Não é que eu não soubesse já
alguma coisa, pouca, sobre filosofia. Sabia que teve o Sócrates na Grécia
antiga, aquele outro que escreveu penso,
logo existo, e também um barbudo, um tal de Marx, que defendia a classe dos
trabalhadores. Mas as filosofias mesmo, desses e dos outros eu não sabia.
Agora é que eu estava conhecendo,
e entendendo alguma coisa. Eu já andava até achando que via as coisas de um
jeito novo, que não sabia muito bem como era. Mas qual seria a minha filosofia?
Até que um dia a coisa saiu quase
pronta da ideia. Pensei e resolvi: ...bem, já que ela falou que a filosofia da
minha vida era o bar, então é mesmo sobre o bar que eu vou filosofar.
E peguei aquelas chamadas
categorias e organizei quase todas elas com o pouco que tinha aprendido.
O rascunhão saiu lá mesmo, numa
mesa do escritório. Contei com a ajuda das minhas anotações das categorias
filosóficas, do dicionário e de certo pensante que sempre dá expediente por lá,
que não cansa de repetir que sabe que nada sabe e que garantiu que ia escrever
essa historia de bar.
Ficou assim, rápido como a primeira
dose e profundo como a saideira.
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Do princípio e do fim: o
princípio existe, pois se tudo fosse nada, o nada seria tudo. Mas não principia
pelo comércio, senão antes pelo tédio que dominando do exterior leva as pessoas
ao bar. O fim é superação do tédio. A reincidência é um princípio sem fim. A
cirrose é o início do fim. Bar, o fim que justifica os meios.
Espaço e tempo: bar é o espaço
que ocupamos pra passar o tempo. Se o tempo é curto, o gole é longo. Se o tempo
é longo e a grana também, o porre é certo. Sendo os espaços grandes ou
pequenos, o tempo de permanência no bar não se altera.
Ser e não ser: no bar você pode
ser até que não seja mais, ou porque não pagou a conta ou porque está no bar
errado e na hora errada. Entretanto há os que só são no bar, onde tornam-se
donos de uma razão que não habita o bar. No bar o ser em si é ser para si, a
não ser que a grana, a hora ou a ocasião impeçam.
Matéria e movimento: no bar
bebe-se e come-se, mas domina o beber. Os corpos, sua matéria, estão quase em
total repouso, no máximo vão e voltam do banheiro. As idéias movimentam-se
incessantemente: afirmação, negação, contestação, numa corrida ao fundo do copo
e daí ao fundo da garrafa. Movimento em nível muito intenso faz voar matéria
pra todo lado.
Dos contrários: entra-se seco
para sair molhado, são para sair torrado. Tem o gelado e o quente, o doce e o
amargo. Há divertidos e chatos, com grana e duros, tem o pago e o pendurado. Os
contrários opõem-se, mas em seu movimento circular realizam uma unidade.
Bebe-se o possível, paga-se se for possível.
Da razão e da ideia: a única
razão sobre o bar a manifestar-se de fora dele, é a de se estar dentro. Se no
bar há razões para se defender uma ideia, há também mil razões para se chegar
em casa com alguma ideia. A razão é abundante fora do bar e rara dentro dele,
onde dominam ideias livres do seu domínio. O bar é a crítica radical da razão
prática e da razão pura.
Do espírito: o verdadeiro
espírito do bar afirma-se pela negação do trabalho, da seriedade e da
matemática, pelo menos do lado de cá do balcão. Mas há os espíritos que pararam
de beber porque não captaram tal particularidade. Se você está vendo alma
penada, pare de beber, ofereça uma dose pro santo, dê uma mijada e caia fora do
bar. Você reviverá das cinzas como Minerva, mas não às tantas da madrugada.
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No dia seguinte, sexta-feira,
cheguei tarde em casa e entreguei pra mulher minha filosofia. Ela leu, me olhou
bem dentro dos olhos e perguntou: veio do escritório. Eu respondi: não, vim da
faculdade de filosofia. Desse dia em diante ela nunca mais falou mal das minhas
idas ao escritório... E depois que descobriu e leu essa historia na internet,
volta e meia me acompanha no expediente, que ela chama de academia.
Tem vezes que a vida prega peças
na gente. Dai começamos a duvidar e achar um saco as historias com final
previsível. Hoje acho muito bom que essa que tô agora acabando de contar não
tenha terminado assim.
Acabou desse jeito: o tempo foi
passando e a mulher deu de ler tudo que podia de filosofia. Todo tipo de textos
da internet e livros. Dos gregos antigos até esses quase de hoje em dia,
passando pelos medievais, modernos e não sei mais o que.
Não demorou muito e eu senti duas
grandes mudanças que foram acontecendo assim sem pedir licença.
A primeira foi que as despesas
dela com os estudos da filosofia passaram a dar grandes mordidas no orçamento
de casa, o que teve que ser compensado com economia no material do escritório.
A outra foi que quando eu chegava
em casa depois dos expedientes, tinha que estar em condições de conversar sobre
coisas cada vez mais complicadas da filosofia. Tanta coisa que até hoje me
confundo: materialismo, idealismo, racionalismo, marxismo, positivismo,
formalismo, estruturalismo, funcionalismo, existencialismo e tantos outros
ismos. Então só ia até aquela calibragem de meio de caminho, que deixa a gente
assim um tanto filosófico, com um pé já lá adiante, mas com o outro bem aqui,
firme na realidade.
Um dia desses, no escritório,
tomando a derradeira, já no limite da dosagem e da hora, contei isso pro nosso
pensante, aquele mesmo que ajudou a escrever a minha filosofia. Logo que ouviu,
ele deu uma grande gargalhada e falou bem alto: Porra Silva! Você pensando que
tinha enrolado a mulher com a tal da filosofia! E no final é ela que usa
filosofia pra te controlar!
Eu escutei e ri também. Mas não
contestei. Calei e dei outra risada, muda, sem mostrar os dentes, só pra mim
mesmo. E fiquei de boa. Feliz por dentro.
Eu sabia que tinha aprendido com
ela, com sua sabedoria, qual o limite daquilo que ela dizia ser a insustentável
leveza do ser, o nome de um dos livros que ela tinha vendido no sebo pra
ajudar a pagar as despesas da semana com o material de escritório. Como ela
diz, se eu fosse o Sartre, ela seria a minha Simone. Ela que sempre me perdoa, pelos excessos e pelas filosofias baratas de botequim.
Oi, desculpem... Estou por aqui
de novo só para umas poucas palavras. Lembram, não é, que abri o texto e logo
passei a voz à personagem central? Não pretendia voltar e não quero interferir
na historia, que é toda dele. Mas como ele me citou numa conversa de bar,
resolvi cair aqui de pára-quedas, assim que ele teclou o ponto final, somente
para confirmar tudo. Falei exatamente aquilo, e ri muito, como ele relatou. E
para quem duvidar dessa historia ou causo que nosso intuitivo e brilhante
filósofo acaba de contar, tenho em casa guardada, manuscrita em guardanapos de
papel, a filosofia original do Silva.
Julio Dias
Janeiro de 2012