quinta-feira, 29 de novembro de 2012

LIBERDADE PARA ACASO!




- Liberdade para Acaso! Liberdade para Acaso! Acaso livre! Acaso livre!
- O que você quer aqui com essa gritaria! Quer entrar e não sair mais daqui, porra?!
- Veja lá como fala comigo. Estou aqui em manifestação pública, exercendo os meus direitos de cidadã! Não é assim que falam, que tá escrito, que todos temos direitos e podemos exercer esses direitos? Então, é o que estou fazendo.
- Tá bom, mas você disse que está fazendo uma manifestação pública, mas tá aqui sozinha, gritando que nem uma maluca na porta da delegacia... O que você quer?
- Olha, tô aqui sozinha, mas minha manifestação é pública; se fosse privada eu fazia lá em casa, no banheiro! Quero liberdade para Acaso! Exijo que soltem ele, que deixem ele livre para sempre!
- Mas quem é esse tal de Acaso?! Você tá é doida! Não tem ninguém aqui com nome nem com um apelido desses. Se manda, ou não por acaso te ponho em cana!
- Você tá mentindo! Passei minha vida toda procurando por Acaso, e descobri que ele tá preso. Sei que ele não tem mais liberdade de fazer e acontecer, de ir e vir, de cair do céu sem nenhum aviso, de surpreender, de encantar...
- Oh Zé! Faz favor, liga pro hospício antes que eu dê uma porradas nessa figura aqui! Faz favor, porque acabo perdendo a cabeça e não tô com estômago pra encarar aqueles malas dos direitos humanos!
- Não adianta, vocês não me enganam. Sei que Acaso tá aí, e não duvido que junto com ele talvez eu encontre Beleza, Liberdade, Igualdade, Fraternidade, Amor, e tantos outros que sumiram do mapa...
- Como é que é? beleza, liberdade, igualdade, amor...? Você toma remédio moça?
- Não, não tomo não, mas deveria tomar mil purgantes contra a ignorância, a miséria, a hipocrisia e todas as desgraças dessa sociedade!

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- Bom dia Aninha, tudo bem? Por acaso estava passando e escutei você gritando... Estava discutindo com alguém? Tá tudo bem?

- Não teve nada não Rafa. Tá tudo bem. É que durmi com a TV ligada, volume alto... Beijo, té depois.

- Outro pra você, tchau. Se cuida hem...





sábado, 22 de setembro de 2012

BOZO MOSTRA A CARA E   SOLTA O VERBO!
Entrevista ao El País

EP: Por que você,  uma personalidade mundial, resolveu ser candidato em Matinhos?

Bozo: Por que não Matinhos? Matinhos é o mundo em miniatura. A ordem estabelecida não quer mudanças e o discurso dos candidatos da ordem é o mesmo que em qualquer parte do mundo.

EP: Onde foi parar aquela cara sorridente do palhaço? 

Bozo: Não estou pra brincadeiras. Aquela cara era produzida pela mídia pra fazer criança rir e vender propaganda na TV. Depois que me mataram e me tiraram do ar foi que descobri a verdadeira cara da mídia, da política dominante, do sistema... Eu sou o fantasma daquele palhaço explorado, enganado e assassinado. Esse sou eu, gostem ou não gostem.

EP: Fale de suas ideais. Qual o sentido da sua candidatura?

Bozo: É simples: MUDAR. Palavras sem ação são só enganação. Vamos mudar tudo, do piso ao teto.

EP: Quais as mudanças que seu governo pretende fazer no mercado de trabalho?

Bozo: Acabar com ele. Isso mesmo: acabar com o mercado e seu trabalho assalariado. Vamos montar uma grande cooperativa produtiva onde as pessoas vão produzir de acordo com suas possibilidades e retirar os recursos para viver de acordo com suas necessidades.

EP: E na educação?

Bozo: Vamos deixar de formar mão-de-obra pra formar gente, seres humanos de verdade. As crianças, os adolescentes, os jovens passarão a se relacionar com o conhecimento livres da cobiça material. Só assim vamos poder pensar na possibilidade de que o verdadeiro ser humano se desenvolva. Meu primeiro ato de governo será um decreto com aumento para os professores, que passarão a ganhar o mesmo que o prefeito.

EP: Com essas ideias você acha, sinceramente, que tem alguma chance?

Bozo: Antes de tudo é decisivo lembar que um fantasma como eu não tem compromissos espúrios com os donos do poder. Lembrem-se: eu não sou deste mundo. Então eu falo simplesmente a verdade, doa a quem doer... A política dominante não está aí pra mudar nada, mas pra dominar as consciências e manter tudo como está: uns poucos lá em cima e o povão cá em baixo... Pra mim, fazer política é trilhar o caminho da extinção da política, num mundo auto-governável, onde as pessoas gastem suas energias com coisas que valham a pena: amor, prazer, arte, cultura livre, festa... Política é chato pra cacete!

EP: Suas últimas palavras aos eleitores.

Bozo: Eu sou o fantasma do Bozo encarnado no VOTO NULO! Minha vitória é protesto. Anulem o voto, contra a ideia do menos pior e de deixar tudo do jeito que está.

sábado, 28 de julho de 2012

Todo poder ao Bozo!


Personalidades libertárias e universais reuniram-se pela internet para aprovar declaração de apoio ao Bozo.  


Em apoio à candidatura do Bozo, nós, virtualmente reunidos, aprovamos o texto a seguir:  
                                                                                   Política é coisa podre porque é a dominação que governa todas as dominações.

Somos dominados economicamente, socialmente, culturalmente. E a política é o chefe dessa dominação total. Sentimos seu cheiro e queremos distância dela.

Porém, a dominação política é tão mais forte quanto mais pensamos que somos livres porque não nos metemos com política. Perto ou longe dela,  violentamente ela nos domina, e governa o mundo.

A força brutal da política chega ao ponto de se apoderar das pessoas a partir das coisas, porque a economia política já faz tempo que transformou a natureza, as coisas e as pessoas em mercadorias. E como mercadorias somos dominados por um conjunto de ideias mercantis que se apresentam perante nós como a naturalidade da vida social.

Somos 99% das pessoas do mundo, nos vendendo como coisas para comprar coisas. Trabalhando todos os dias produzindo coisas, para receber um pagamento pra comprar coisas.


A política nos transformou em coisas, e o seu poder assombroso é que ela continua a reproduzir isso sem parar, não permitindo que nossa consciência desvende seus segredos.
É tão difícil olhar o mundo e entendê-lo como ele verdadeiramente é, justamente porque a política nos domina. E faz da historia humana uma grande e cruel palhaçada, que só tem sentido para os donos desse grande circo universal.


E não existe outra forma de acabar com a política senão fazendo política.
                                                                                     
Mas não uma política qualquer, e muito menos a política dominante do estado, dos políticos profissionais e seus partidos. É preciso fazer política contra a política, política pelo fim de toda a política dominante.


Essa política deve ser realista, propondo somente o que os donos do poder dizem ser impossível: o fim das classes sociais, do Estado e de todas as formas de  exploração e dominação do homem pelo homem.








                                                                                   
Enquanto não atingimos esse modesto ideal, lançamos a candidatura do Bozo , como um manifesto político contra a política dominante! Portanto, se em sua cidade não há candidatos que enfrentem a política dominante, você tem todas as razões para eleger o Bozo!










quinta-feira, 26 de julho de 2012

Todos contra o Bozo!


Mais uma vez Bozo surpreende o mundo! Nosso combatente contra a política dominante abriu espaço em sua campanha para seus inimigos mais ferozes!


"Eu sou inimigo do Bozo até o último fio de cabelo, digo, ponta da última pena! Ele é da pior espécie, porque suas ideias vão contra tudo o que eu sou e represento. Bozo é contra a exploração do trabalho e a acumulação da riqueza! O mundo pode ficar muito perigoso se as pessoas tiverem muito tempo e dinheiro pra vadiar. Trabalhando pra mim ou pra qualquer outro da minha classe, o povão não tem tempo nem dinheiro pra ficar pensando em besteiras como prazer, arte e liberdade."




"Eu sou muito mais velho que o Bozo. Eu incorporo em todo tipo de gente desde o início do século passado! Mas eu não sou um espírito, como ele. Eu sempre renasço das contradições sociais para botar ordem na desordem do mundo! Bozo representa um perigo ao futuro da humanidade! Essa sua conversa de liberdade, fim do trabalho compulsório, do Estado e do autoritarismo e da repressão em geral é um absurdo! Soube que ele é candidato! Se eu topo com ele no mundo dos mortos ou dos vivos, meto-o num campo de concentração e depois numa câmara de gás!"


"Eu também não gosto nada dessas ideias do Bozo! Esse trololó de que violência é culpa da sociedade, me deixa furioso! Pior ainda são essas teorias que dizem que a mídia reforça a tendência natural do sistema em transformar consequências em causas, vítimas em culpados, e de que eu e meus companheiros de ofício vivemos á custa do sensacionalismo da violência! Eu acho que o lugar do Bozo é na cadeia, junto com todos os outros vagabundos!"


"Não preciso dizer quem eu represento... Pensei muito se deveria dizer alguma coisa... mas pelo bem da nação e dos bons costumes, resolvi me pronunciar.Vou dar um conselho para o Bozo e seus apoiadores: parem com isso de ser contra o sistema... O sintema é bom... Organizem um partido político para eleger seus candidatos para representarem o povo. O mundo é bom... As pessoas é que não são. Todos nós, no fundo, queremos mesmo é saber dos nossos interesses particulares, e por isso é que o mundo precisa do Estado e dos partidos políticos institucionais e seus políticos profissionais. O homem é o lobo do homem, e nós políticos somos bem pagos para governar, para realizar a arte do possível em nome do povo e minorar seus flagelos e contradições. A humanidade não precisa de grandes mudanças, mas sim de reformas pontuais que façam sua economia e sua política funcionar melhor, e blá, blá, blá e mais blá, blá, blá... Ah, sim, parem também de falar tanto dos grandes homens e suas grandes empresas, pois eles é que financiam nossa atividade."

terça-feira, 24 de julho de 2012

Chaves apoia Bozo


Em entrevista concedida ao New York Times, Chaves fala sobre a candidatura do Bozo.  

NYT: Você apóia o Bozo por quê?
Chaves: Eu apoio o Bozo porque ele é um filósofo do povo. Ele disse que a realidade é feita do tudo e do nada, porque tudo começa do nada, senão tudo já existiria desde sempre, e por isso, do nada ele vai fazer tudo. Por outras palavras: Bozo é nada, mas como protesto e revolta do povo pode tudo.
NYT: Qual a importância do Bozo Prefeito?
Chaves: Política é a mentira que domina passando-se por verdade. Bozo é o contrário, ele é a mentira que o povo precisa pra inventar uma realidade com menos sofrimento e mais felicidade. Bozo chegou pra atropelar a política. Votar no Bozo é dizer um não bem grande às maquinações dos poderosos e seus representantes.
NYT: Como surgiu a candidatura do Bozo?
Chaves: De repente alguém que estava sem fazer nada colou a foto do Bozo numa parede, e ele virou candidato. Simples assim. Por isso o Bozo é o candidato natural do povo, que luta pra ficar mais tempo sem fazer nada. Só o Bozo pode garantir nosso direito à preguiça.
NYT: Fale um pouco sobre o Bozo. Ele é real?
Chaves: O Bozo candidato é a encarnação do fantasma do palhaço Bozo, aquele da TV. Aquele Bozo que foi inventado pra aumentar audiência, vender propagandas e alegrar criancinhas. E depois que ele rendeu muito dinheiro, tiraram ele do ar, mataram o palhaço e junto com ele mataram também a felicidade inocente da criançada, que não entendeu porque ele tinha que morrer... Então, agora, o  espírito vingador daquele palhaço explorado, enganado e assassinado, voltou como candidato pra se vingar de toda exploração, enganação e violências que o andar de cima e seus políticos profissionais fazem contra o andar de baixo, contra o povo. Por isso o Bozo é real, porque ele é a verdade que retorna pra denunciar a mentira.
NYT: Qual o programa do governo Bozo?
Chaves: Bozo não tem programa. Quando seu programa foi tirado do ar ele concluiu com razão que em geral os programas são a enganação organizada. Bozo será na verdade um desgoverno positivo, um desgoverno pelo muito mais do que é bom: mais amor, mais festa, mais arte, mais cultura, mais lazer, mais riqueza, mais natureza, mais liberdade... mais tempo pra não fazer nada.
NYT: Que recado você manda para os eleitores do Bozo?
Chaves: O espírito do Bozo vaga pelo mundo pra denunciar a mentira da política, que é a mentira-mãe de todas as mentiras, é a dominação das dominações. Se em sua cidade os candidatos são Fulano Normal, Cicrano Igual ou Etecétara de Tal, ELEJA O BOZO PORQUE O BOZO É O PODER DO POVO, até que o povo seja o poder.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Épica da poética



Poesia vivia com Política
Eram Poiesis.
República ameaçada as separou
Dividindo pra governar.
Política juntou-se com Economia
E Poesia seguiu só.

Realidade deu de ombros
E deixou acontecer.
Historia organizou o caminho
Criando mitos e revoluções.
Verdade sempre escondida na casa de Filosofia
Inventou Ciência pra dominar Natureza.

Depois Império expandindo o mundo
Fez Historia correr.
Razão ajudou mudando
De acordo com Realidade.
E Trabalho foi dominado por Máquina                                                     Produzindo Dinheiro.

Dinheiro aprisionou Arte                                                                               E seus filhos se rebelaram.
Política também reagiu                                                                                                                            Mas Economia a domesticou.
Realidade foi tomada por Dinheiro
Que existe pra comprar Verdade.

Desafiando Realidade
Poesia vai mudar pro Cotidiano.
Quer estar próxima do Homem
Entoando seus cantos.
Pedindo que venha logo
Assumir o comando.



Julio

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Odair José contra a indústria cultural


Lembro que foi num início de noite, 1980 ou 81. Eu estava sentado na escada do hall de entrada do prédio onde morava. Tinha meus 19 ou 20 anos. Havia voltado ao Rio, vindo de Curitiba com a família depois de 3 ou 4 anos. Um começo de noite. Odair José desceu de seu apartamento com o violão no ombro, de camisa xadrêz com mangas enroladas, calças boca-de-sino, colar de prata e óculos escuros.

Acho que falei um "oi Odair", perguntei onde ele ia e ouvi um "aeroporto". Era nosso vizinho. Meus preconceitos de classe média e a idade de delumbramento não permitiam que eu entendesse aquele artista.

Só quase trinta anos depois é que pude entender. Simone e eu estávamos conversando sobre música e falamos de Odair José porque ele foi o artista mais censurado na época da ditadura. É que a simplicidade popular de suas canções dava conta dos temas complicados para aqueles tempos bicudos: exclusão social, racismo, homosexualismo, drogas, prostituição, traição conjugal... Então, numa mesa uns três metros da nossa, no bar da dona Judi, um cara levantou-se e pediu para sentar-se com a gente. Ele era fã de Odair José e cumprimentou-me com muita admiração porque eu conhecia o Odair.

Dias depois dessa noite, remoendo o acontecido, acho que entendi a arte de Odair José. As letras de suas canções são românticas, mas de um romantismo imerso nas tragédias reais do povo. Amores colhidos nos escombros do cotidiano da realidade popular, como sua negação. Construídos como um desafio romântico contra as tragédias reais da vida.

Adorno afirmou que a indústria cultural empresta elementos estéticos das artes para sua auto-reprodução como produtora de mercadorias culturais. Um desses empréstimos ela faz ao trágico. A tragédia grega era a negação do mito como afirmação da vontade humana. A tragédia na indústria cultural é a dominação cultural das massas, uma dominação de classes disfarçada de cultura, onde a barbárie social é vendida como doses de ameaça à subversão da ordem. Como um Datena na TV.

Antes de Marx os economistas  já haviam estabelecido que os assalariados tiravam do produto social apenas o necessário para a reprodução de sua força de trabalho. A música de Odair José é o romantismo popular que sai do trágico para afirmar-se. O cara que casa com a prostituta (Eu vou tirar você deste lugar) e tantas outras letras com essa sua marca, são soluções populares para a realidade de suas próprias vidas, criadas com os instrumentos de sua própria cultura, com o salário cultural que o capitalismo paga às massas para sua reprodução espiritual.

Odair José, como outros artistas populares, consegue romper o sistema da indústria cultural com suas subversões conceituais, criando uma espécie de mais-valia semântica que fica no ar como um vírus em propagação. É preciso apropriar-se dela.

Hoje no jornal Bom dia Brasil a Globo levou Odair José ao ar. Os apresentadores, com um sorriso não contido de sarcasmo anunciaram a novidade: Odair José era moda novamente, cantado por Zéca Balero e outros da MPB. A cena foi gravada no Viaduto do Chá em São Paulo, com o compositor cantando com populares que tinham sua músicas na ponta da lingua.

Não precisamos dizer que a Globo não estava lançando um novo compositor popular. Como um dos gigantes da indústria cultural, do alto de sua posição dominante ela mandou seu recado, dizendo que a boa arte reproduz a vida como ela é, e que os artistas supostamente mais equipados culturalmente estavam aprendendo essa lição...

Mas sem saber, a arte de Odair José afirma a realidade dominante para negá-la. Na mercadoria cultural vive escondido o sentido de sua destruição.


Julio Dias

sábado, 23 de junho de 2012

A torta de amoras e a felicidade técnica


o

Entre tantos textos interessantes do pensador alemão Walter Benjamin, Torta de amoras e Figos frescos falam da diferença visceral que existe entre comer e devorar. Discorre sobre a devoração compulsiva de uma torta de amoras e o afundar de dentes num figo maduro. Fala do prazer da gula como vivência humana, como a dimensão arrebatadora de apropriar-se das coisas boas da vida frente à conduta comportada e socialmente programada de alimentar-se.

Benjamin viveu no início do século passado. Seu tempo foram os anos da República de Weimar, da ascensão do nazismo, do stalinismo e da depressão econômica dos anos de 1930.

Suas preocupações e a energia de sua vida ele as dirigiu para a historia, mas não para seus grandes feitos oficiais e toda a sua parafernália de heróis, datas e períodos. Seu horizonte era o homem do tempo  presente procurado na historia à contra-pelo, para usar uma expressão também sua.

Talvez nossos dias testemunhem um tipo de alegria sistêmica como em nenhuma outra época. Claro que o observador sempre está sujeito a super-dimensionar o seu tempo, mas a felicidade inscrita nas conversas e estampada nos nossos rostos quando falamos do consumo das tecnologias atuais de uso pessoal mostra a repetição, numa escala impressionantemente superior, dos ciclos fantasmagóricos da indústria cultural esmiuçados por Adorno.

O conceito de mercadoria definido por Marx como a categoria mais elementar do capitalismo, como a forma social a partir da qual a produção e a reprodução social se realizam no capitalismo, é empregada por Adorno para investigar o funcionamento da cultura de massas produzida pelas grandes corporações.

Este início do século 21 fez da internet, dos tablets e dos celulares de última geração não apenas símbolos efêmeros da afirmação aterradora da realidade existente, mas uma parte cada vez mais inseparável do ser humano, que o liga a partir da grande rede a uma memória onipresente, ao mesmo tempo ego e super-ego. Um controle do indivíduo sobre a realidade, por estar nela, em seu tempo. Um controle da realidade sobre o indivíduo. O segundo reduz o primeiro à mera ilusão.

As mercadorias que mediam as relações entre os homens, impedindo um relacionamento humano direto, e que agora ligam as pessoas em tempo real à grande memória mercantil, cultural e científica que o mundo reproduz incessantemente para reafirmar-se a si próprio como única realidade possível.

A alegria conectiva parece já constituir-se como uma parte do comportamento humano. Seus dispositivos de conexão já se assemelham a um orgão virtual do organismo. A felicidade fácil das maravilhas da tecnologia não se mostra como verdadeiramente é  num primeiro olhar. É preciso atenção aos seus arroubos e razões para entendermos que ela é a negação da verdadeira alegria humana desinteressada, e que por trás desses monumentos de cultura tecnológica está a barbárie como monumento da historia humana, no trabalho alienado, no lixo tecnológico, e na gargalhada de uma alegria que passa longe de perceber tudo isso, repetitiva  e fechada em si mesma como os signos da linguagem da máquina.

A devoração da torta de amoras é uma dimensão humana que deve ser recuperada como afirmação do prazer. É sublimação da fome pela gula, como o romance é sublimação do sexo para sua consumação, como os momentos preliminares que a música prepara para o desenlace do tema.

A compulsão da gula é um desafio atávico contra a dominação do trabalho, da técnica e da cultura sobre o homem. É a revolta do animal humano contra a brutalidade da sua historia.


Julio Dias

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Comida, conhecimento e prazer


Dia desses nos afazeres de cozinha deixei queimar o feijão. Um pensamento veio e levou-me pra bem longe, de onde só voltei depois de sentir o cheiro forte de queimado.


Vou iniciar o relato da viagem por uma só pergunta: de que maneira a culinária reúne conhecimento e prazer?


E agora, longe da fúria incendiária do fogão, tentarei respondê-la.


Culinária é conhecimento porque por meio dela podemos conhecer dimensões particulares de outras culturas: seus gostos e sua ciência de cozinhar.


Isso pode parecer pouca coisa, mas não é. Se pararmos pra pensar na quantidade e variedade de pratos que a humanidade criou e continua a criar, concluiremos sem dificuldade que a arte do bem comer é uma necessidade que vem da procura de novos paladares, e não da simples necessidade alimentar.


Os bichos não-humanos nutrem-se apropriando-se do que a natureza lhes oferece, in natura. Nós também nos nutrimos, mas transformando a natureza em incontáveis receitas, sempre procurando novos sabores.


Portanto, culinária é conhecimento de duplo caráter: manifestação da diversidade cultural e da práxis humana.


E o prazer? Bem, prazer é termo abrangente. Podemos dizer que ele pode estar tanto na ciência e no trabalho de cozinhar como na degustação.


Um long food em casa, entre família e amigos, pode ser atividade prazerosa e não-alienada, onde você se reconhece na comida que preparou e consumiu.


Já o prazer de comer pode parecer muito óbvio, mas só superficialmente. Como na música, onde as notas, os tons, a melodia e o andamento fazem um todo harmonioso, a  culinária, da mesma forma, combina seus gostos, texturas, aromas e sua imagética num produto único. Seu prazer exige  paladar apurado, assim como a boa música requer audição à altura.


Ouso dizer que os prazeres da boa gula estão na mesma altura dos sexuais e intelectuais.


Talvez a alegria plena seja superior, mas aí certamente a boa mesa será parte dessa plenitude.


À margem do cardápio: um prato autoral é obra de arte para a fruição gustativa, olfativa e visual. Bom apetite!




Simone Preischardt



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Na proa






Barcos singrando em ilusões de água e sal
Pigmentos movem-se por idéias,
cá longe do além.

Vêm de trás pra diante
Ultrapassam futuros em vagas,
 ancoram no inquieto cais das memórias.

Com Bóreas construo mundos que vivem sem igual
Lógicas sólidas como moréias,
Navegação em trem.

Embarco flutuante
Cruzo a baia como ao bojador das almas,
de volta ao mundo das minhas novas-velhas historias.


Julio Dias








sábado, 28 de janeiro de 2012

Procurando uma ideia

                                                                                                                                                          

O pensamento é uma coisa no mínimo curiosa. Tivemos a idéia de pensar numa ideia, e a partir dela desenvolvermos uma boa historia.
Conversamos sobre como poderia ser ao mesmo tempo um desafio, uma aventura e um grande barato usar a imaginação desenvolvendo uma historia bem contada, interessante, envolvente, com aventura, coisas inesperadas e talvez até engraçadas.
Foi ontem de noite que essa historia começou. E agora,quando começamos a escrevê-la, não temos ainda qualquer ideia para darmos o pontapé inicial.
Por isso resolvemos começar essa nossa historia assim mesmo, sem nenhuma ideia, senão a primeira, a ideia de termos uma ideia...
 Assim, de cara, isso pode parecer um absurdo, principalmente para quem tem a ideia fixa de achar que se você não tem nada para contar é melhor ficar calado, e muito menos pensar em tentar escrever alguma coisa... Como é, mesmo?! Ah, sim... boca fechada não entra mosca...
Mas o que aconteceu foi que de tanto pensarmos numa ideia, falamos de várias delas, que foram passando pelas nossas cabeças, mas que logo concluímos que não serviam, que não iam dar em nada, não iriam pra frente, e muito menos dariam historias interessantes para serem contadas.
Foi então que de tanto pensarmos em idéias que íamos logo deixando de lado, tivemos num estalo uma certa ideia: na falta de idéias interessantes, restava um caminho, que era falarmos porque cada uma dessas idéias que fomos descartando não nos pareciam interessantes. E começamos por ai.
Pensamos em falar sobre as ideias dos outros, mesmo sem podermos saber com certeza o que estariam pensando naquele momento.
Está claro que nos referíamos a pessoas conhecidas, e assim não seria muito difícil que a partir de suas personalidades próprias conseguíssemos desenvolver idéias que elas pudessem estar pensando naquele momento... Mas logo chegamos a duas conclusões.
A primeira foi que se nós dois não estávamos conseguindo ter idéias próprias, que já estivessem aqui dentro das nossas cabeças, seria ainda mais difícil plantarmos idéias nas cabeças de outros. E cá entre nós, estaríamos assinando atestado de falta de imaginação.
A outra conclusão foi que ficar inventando idéias para os outros poderia acabar em confusão, e essa sim foi decisiva pra abandonarmos a tal ideia.
Passou pelas nossas cabeças a ideia de vazio, como cabeças vazias de idéias. Conversamos muito sobre isso. Sobre a mídia como grande produtora de idéias que passam a invadir a cabeça de todos nós com tanta força que muitas vezes chegamos à conclusão de que não temos mesmo idéias próprias...
Mas ai achamos que o papo ficaria muito filosófico, cabeça demais, parecendo que saiu tudo da ideia de um pai com 50, e nada da do filho com 14. E desistimos.
Não vamos negar, não seria justo: pensamos em sexo. Mas logo nos tocamos de que não tínhamos a mínima condição de fazer algo razoável nessa matéria, que se aproximasse um pouquinho que fosse da realidade ou de tudo que rola na internet. Partimos pra outra.
Também rolou aventuras e até ficção científica. Mas depois das nossas viagenzinhas, caímos na real. A ciência, a tecnologia e os efeitos especiais de hoje fariam nossa imaginação parecer coisa pra criança.
Enfim, pensamos sobre tantas idéias que ficaríamos por aqui parágrafos e mais parágrafos... Mas agora mesmo acabamos de pensar numa coisa que nos faz reafirmar a primeira frase desta historia, de que o pensamente é uma coisa curiosa mesmo. Pensamos sobre tantas coisas sem termos nenhuma ideia boa na cabeça... Imaginem então o que faríamos com uma boa ideia.
E, mais importante, pesquisamos e descobrimos que a filosofia começou assim. Livres de ocuparem-se com coisas práticas certos homens começaram a pensar sobre o próprio pensamento e assim deram início ao mais profundo e verdadeiro de todos os conhecimentos. Longe de nós uma pretensão dessas, mas enfim...

Gabriel Dias
Julio Dias

Janeiro de 2012  


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A filosofia do Silva




Tem idéias que a gente tem de repente, assim, do nada. Ninguém aprende a andar por teorias. Simplesmente um dia andamos. As idéias são assim. Elas vêm, e ponto.

Acontece de variar de pessoa pra pessoa o lugar onde se tem ideias.


Comigo esse lugar é o bar. Não todo bar, mas só esse ou aquele. Digamos um ou dois, no máximo, e em certas épocas. E depois passando talvez a ser aquele outro e mais este, de onde acabo de sair faz pouco tempo, correndo para casa a fim de não perder a ideia, antes de passá-la da cabeça para as letras.

Assim, daqui por diante, já é outro quem fala, como falei até aqui eu, na primeira pessoa. Um outro que veio na ideia, portanto é um pouco eu e um pouco outros, dos bares e de fora deles, que a vida teve o capricho ou o despropósito de me fazer viver. Até logo ou até o fim da historia dessa ideia de bar. Em tempo: mudo de assunto mais não de parágrafo, para que o nosso conviva possa logo tomar a palavra já no próximo. E se vocês acharem que o que vem por diante é uma historia dentro de outra história, não se preocupem. É isso mesmo. Vejamos.

Peguei caminho da rua que nem doido. Tinha acabado de brigar em casa, por besteira, e tava puto com a briga e com a besteira.

Tomei fôlego e direção. Caminho do bar. A coisa era de aborrecer até gente sem as idéias no lugar. Fui andando, com o pensamento fuzilando. O que uma coisa tem haver com outra coisa? Uma coisa é uma coisa, outra coisa...     

Já no boteco, pedi uma. Cumprimentei um e outro, que conhecia, e respirei um pouco de alívio. Mas aquele pensamento não me largava. A briga por besteira, que já perecia que não era tanta besteira assim. Uma coisa perdida foi achar justamente o motivo do sumiço nos meus expedientes do escritório, que é como eu chamo o bar que gosto de ir. Eu tava com muita raiva.

E continuei pensando. Se não bastasse isso, ainda tive que ouvir uma coisa assim: você não tem um sentido na vida! Sua filosofia é o bar! Ai não aguentei, e respondi, pensando que ia ter a última palavra: Isso, minha filosofia é o bar! Qual o problema? Virei às costas e ouvi: tá bom então. Conta ai como é essa filosofia. Ai foi que fiquei mais bravo, porque não tinha uma resposta.

Tomei mais umas, conversei, ouvi um monte de historias, e até esqueci um pouco do acontecido. Já lá pelo final do expediente lembro que perguntei a alguém: sabe o que é uma filosofia? E tive essa resposta: são pensamentos, explicações sobre o sentido da vida... Não é que eu não tivesse na cabeça uma idéia dessas, claro que tinha, mas queria escutar dos outros, que talvez ouvisse coisa mais funda do que já sei... Logo voltei pra casa, já final de tarde, dia de domingo.

Não falei mais nada que fosse ligado com a confusão. A noite chegou e tudo correu em paz, de acordo com isso que chamam rotina, a vida vivida assim corrida e levada pelo tempo com as coisas que a gente sempre tem que fazer.

Dia seguinte, a ideia voltou. Ia cumprindo as tarefas do trabalho, e ela sempre lá: minha filosofia de vida... Num estalo resolvi sair um pouco mais cedo do trabalho e passar numa biblioteca pública antes do almoço.

Fui. Cheguei lá, entrei e falei pra funcionária: quero ver livros de filosofia. E eu fui seguindo ela por aqueles corredores cheios de livros que não acabavam mais. Num lugar ela parou, virou pra mim e disse: a seção de filosofia está aqui. Que assunto ou autores o senhor quer consultar? E eu disse: não sei, são tantos?! Ela insistiu em me ajudar. Falou: diga o que o senhor procura que talvez eu consiga achar... Ai enchi o peito e mandei: quero ler pra pensar e chegar numa filosofia minha...

E aquelas palavras saíram assim meio dum jeito de doutor. E a moça olhou pra mim com cara de deboche e me deixou lá no meio daquele labirinto. Eu não perdi a pose, passei a mão num livro qualquer sobre filosofia, fiz a tal da ficha de empréstimo e me mandei pra casa atrás da bóia.

Os dias foram passando. Lia sempre um pouco nas andanças do ônibus, mas confesso que tive muitas dificuldades com as idéias dos filósofos, no início. Mas fui lendo. O ônibus balançava e a vista acompanhava a linha e o pensamento...

Um dia tive uma luz quase filosófica. Entrei numa lan house e mandei ver: grandes filósofos e suas idéias. E li bastante.

Depois pensei que podia encontrar um jeito de aprender mais rápido as coisas da filosofia, pra ter conhecimento que bastasse pra pensar e chegar a uma filosofia muito minha, e mostrar em casa que eu tinha ideias sobre a vida. Pensei por dias e cheguei à conclusão de que a filosofia, como qualquer trabalho, também devia de ter as suas coisas próprias os seus jeitos de pensar organizar e fazer, trabalhar. Mas quais eram essas coisas eu não sabia.

Não demorou até que sem querer li no jornal a palavra: categoria. Era sobre futebol, mas não deu outra. Voltei na lan e pronto. Logo achei uma batelada de respostas que tava procurando, chamadas categorias filosóficas.

E não era pouca coisa: ser, natureza, não ser, verdade, razão, tempo, espírito, matéria, ideia, tudo, nada, princípio, fim, meios... A lista era grande, mas era coisa muito interessante, que forçando um tanto a mente, se não pegava logo, depois vinha o entendimento, ou pelo menos um pouco que fosse dele.

E continuei lendo o livro, e as folhas que tinha imprimido, pensando cada dia mais. Até já sabia muita coisa, mas como é que vai ser essa minha tal filosofia? Ainda não sabia. Insisti, e comprei um dicionário pequeno pra ajudar com as palavras ditas técnicas.

De vez em quando a mulher estranhava que eu não tava na sala vendo TV. Perguntava: tá fazendo o que ai no quarto Silva? Vem pra cá ficar com a gente, dizia. Dali um pouco eu ia, mas sempre que dava me empenhava na leitura e nos pensamentos.

Não é que eu não soubesse já alguma coisa, pouca, sobre filosofia. Sabia que teve o Sócrates na Grécia antiga, aquele outro que escreveu penso, logo existo, e também um barbudo, um tal de Marx, que defendia a classe dos trabalhadores. Mas as filosofias mesmo, desses e dos outros eu não sabia.

Agora é que eu estava conhecendo, e entendendo alguma coisa. Eu já andava até achando que via as coisas de um jeito novo, que não sabia muito bem como era. Mas qual seria a minha filosofia?

Até que um dia a coisa saiu quase pronta da ideia. Pensei e resolvi: ...bem, já que ela falou que a filosofia da minha vida era o bar, então é mesmo sobre o bar que eu vou filosofar.

E peguei aquelas chamadas categorias e organizei quase todas elas com o pouco que tinha aprendido.

O rascunhão saiu lá mesmo, numa mesa do escritório. Contei com a ajuda das minhas anotações das categorias filosóficas, do dicionário e de certo pensante que sempre dá expediente por lá, que não cansa de repetir que sabe que nada sabe e que garantiu que ia escrever essa historia de bar.

Ficou assim, rápido como a primeira dose e profundo como a saideira.

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Do princípio e do fim: o princípio existe, pois se tudo fosse nada, o nada seria tudo. Mas não principia pelo comércio, senão antes pelo tédio que dominando do exterior leva as pessoas ao bar. O fim é superação do tédio. A reincidência é um princípio sem fim. A cirrose é o início do fim. Bar, o fim  que justifica os meios.

Espaço e tempo: bar é o espaço que ocupamos pra passar o tempo. Se o tempo é curto, o gole é longo. Se o tempo é longo e a grana também, o porre é certo. Sendo os espaços grandes ou pequenos, o tempo de permanência no bar não se altera.

Ser e não ser: no bar você pode ser até que não seja mais, ou porque não pagou a conta ou porque está no bar errado e na hora errada. Entretanto há os que só são no bar, onde tornam-se donos de uma razão que não habita o bar. No bar o ser em si é ser para si, a não ser que a grana, a hora ou a ocasião impeçam.

Matéria e movimento: no bar bebe-se e come-se, mas domina o beber. Os corpos, sua matéria, estão quase em total repouso, no máximo vão e voltam do banheiro. As idéias movimentam-se incessantemente: afirmação, negação, contestação, numa corrida ao fundo do copo e daí ao fundo da garrafa. Movimento em nível muito intenso faz voar matéria pra todo lado.

Dos contrários: entra-se seco para sair molhado, são para sair torrado. Tem o gelado e o quente, o doce e o amargo. Há divertidos e chatos, com grana e duros, tem o pago e o pendurado. Os contrários opõem-se, mas em seu movimento circular realizam uma unidade. Bebe-se o possível, paga-se se for possível.

Da razão e da ideia: a única razão sobre o bar a manifestar-se de fora dele, é a de se estar dentro. Se no bar há razões para se defender uma ideia, há também mil razões para se chegar em casa com alguma ideia. A razão é abundante fora do bar e rara dentro dele, onde dominam ideias livres do seu domínio. O bar é a crítica radical da razão prática e da razão pura.

Do espírito: o verdadeiro espírito do bar afirma-se pela negação do trabalho, da seriedade e da matemática, pelo menos do lado de cá do balcão. Mas há os espíritos que pararam de beber porque não captaram tal particularidade. Se você está vendo alma penada, pare de beber, ofereça uma dose pro santo, dê uma mijada e caia fora do bar. Você reviverá das cinzas como Minerva, mas não às tantas da madrugada.

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No dia seguinte, sexta-feira, cheguei tarde em casa e entreguei pra mulher minha filosofia. Ela leu, me olhou bem dentro dos olhos e perguntou: veio do escritório. Eu respondi: não, vim da faculdade de filosofia. Desse dia em diante ela nunca mais falou mal das minhas idas ao escritório... E depois que descobriu e leu essa historia na internet, volta e meia me acompanha no expediente, que ela chama de academia.

Tem vezes que a vida prega peças na gente. Dai começamos a duvidar e achar um saco as historias com final previsível. Hoje acho muito bom que essa que tô agora acabando de contar não tenha terminado assim.

Acabou desse jeito: o tempo foi passando e a mulher deu de ler tudo que podia de filosofia. Todo tipo de textos da internet e livros. Dos gregos antigos até esses quase de hoje em dia, passando pelos medievais, modernos e não sei mais o que.

Não demorou muito e eu senti duas grandes mudanças que foram acontecendo assim sem pedir licença.

A primeira foi que as despesas dela com os estudos da filosofia passaram a dar grandes mordidas no orçamento de casa, o que teve que ser compensado com economia no material do escritório.

A outra foi que quando eu chegava em casa depois dos expedientes, tinha que estar em condições de conversar sobre coisas cada vez mais complicadas da filosofia. Tanta coisa que até hoje me confundo: materialismo, idealismo, racionalismo, marxismo, positivismo, formalismo, estruturalismo, funcionalismo, existencialismo e tantos outros ismos. Então só ia até aquela calibragem de meio de caminho, que deixa a gente assim um tanto filosófico, com um pé já lá adiante, mas com o outro bem aqui, firme na realidade.

Um dia desses, no escritório, tomando a derradeira, já no limite da dosagem e da hora, contei isso pro nosso pensante, aquele mesmo que ajudou a escrever a minha filosofia. Logo que ouviu, ele deu uma grande gargalhada e falou bem alto: Porra Silva! Você pensando que tinha enrolado a mulher com a tal da filosofia! E no final é ela que usa filosofia pra te controlar!

Eu escutei e ri também. Mas não contestei. Calei e dei outra risada, muda, sem mostrar os dentes, só pra mim mesmo. E fiquei de boa. Feliz por dentro.

Eu sabia que tinha aprendido com ela, com sua sabedoria, qual o limite daquilo que ela dizia ser a insustentável leveza do ser, o nome de um dos livros que ela tinha vendido no sebo pra ajudar a pagar as despesas da semana com o material de escritório. Como ela diz, se eu fosse o Sartre, ela seria a minha Simone. Ela que sempre me perdoa, pelos excessos e pelas filosofias baratas de botequim.

Oi, desculpem... Estou por aqui de novo só para umas poucas palavras. Lembram, não é, que abri o texto e logo passei a voz à personagem central? Não pretendia voltar e não quero interferir na historia, que é toda dele. Mas como ele me citou numa conversa de bar, resolvi cair aqui de pára-quedas, assim que ele teclou o ponto final, somente para confirmar tudo. Falei exatamente aquilo, e ri muito, como ele relatou. E para quem duvidar dessa historia ou causo que nosso intuitivo e brilhante filósofo acaba de contar, tenho em casa guardada, manuscrita em guardanapos de papel, a filosofia original do Silva.


Julio Dias

Janeiro de 2012