Lembro que foi num início de noite, 1980 ou 81. Eu estava sentado na escada do hall de entrada do prédio onde morava. Tinha meus 19 ou 20 anos. Havia voltado ao Rio, vindo de Curitiba com a família depois de 3 ou 4 anos. Um começo de noite. Odair José desceu de seu apartamento com o violão no ombro, de camisa xadrêz com mangas enroladas, calças boca-de-sino, colar de prata e óculos escuros.
Acho que falei um "oi Odair", perguntei onde ele ia e ouvi um "aeroporto". Era nosso vizinho. Meus preconceitos de classe média e a idade de delumbramento não permitiam que eu entendesse aquele artista.
Só quase trinta anos depois é que pude entender. Simone e eu estávamos conversando sobre música e falamos de Odair José porque ele foi o artista mais censurado na época da ditadura. É que a simplicidade popular de suas canções dava conta dos temas complicados para aqueles tempos bicudos: exclusão social, racismo, homosexualismo, drogas, prostituição, traição conjugal... Então, numa mesa uns três metros da nossa, no bar da dona Judi, um cara levantou-se e pediu para sentar-se com a gente. Ele era fã de Odair José e cumprimentou-me com muita admiração porque eu conhecia o Odair.
Dias depois dessa noite, remoendo o acontecido, acho que entendi a arte de Odair José. As letras de suas canções são românticas, mas de um romantismo imerso nas tragédias reais do povo. Amores colhidos nos escombros do cotidiano da realidade popular, como sua negação. Construídos como um desafio romântico contra as tragédias reais da vida.
Adorno afirmou que a indústria cultural empresta elementos estéticos das artes para sua auto-reprodução como produtora de mercadorias culturais. Um desses empréstimos ela faz ao trágico. A tragédia grega era a negação do mito como afirmação da vontade humana. A tragédia na indústria cultural é a dominação cultural das massas, uma dominação de classes disfarçada de cultura, onde a barbárie social é vendida como doses de ameaça à subversão da ordem. Como um Datena na TV.
Antes de Marx os economistas já haviam estabelecido que os assalariados tiravam do produto social apenas o necessário para a reprodução de sua força de trabalho. A música de Odair José é o romantismo popular que sai do trágico para afirmar-se. O cara que casa com a prostituta (Eu vou tirar você deste lugar) e tantas outras letras com essa sua marca, são soluções populares para a realidade de suas próprias vidas, criadas com os instrumentos de sua própria cultura, com o salário cultural que o capitalismo paga às massas para sua reprodução espiritual.
Odair José, como outros artistas populares, consegue romper o sistema da indústria cultural com suas subversões conceituais, criando uma espécie de mais-valia semântica que fica no ar como um vírus em propagação. É preciso apropriar-se dela.
Hoje no jornal Bom dia Brasil a Globo levou Odair José ao ar. Os apresentadores, com um sorriso não contido de sarcasmo anunciaram a novidade: Odair José era moda novamente, cantado por Zéca Balero e outros da MPB. A cena foi gravada no Viaduto do Chá em São Paulo, com o compositor cantando com populares que tinham sua músicas na ponta da lingua.
Não precisamos dizer que a Globo não estava lançando um novo compositor popular. Como um dos gigantes da indústria cultural, do alto de sua posição dominante ela mandou seu recado, dizendo que a boa arte reproduz a vida como ela é, e que os artistas supostamente mais equipados culturalmente estavam aprendendo essa lição...
Mas sem saber, a arte de Odair José afirma a realidade dominante para negá-la. Na mercadoria cultural vive escondido o sentido de sua destruição.
Julio Dias