sexta-feira, 29 de junho de 2012

Odair José contra a indústria cultural


Lembro que foi num início de noite, 1980 ou 81. Eu estava sentado na escada do hall de entrada do prédio onde morava. Tinha meus 19 ou 20 anos. Havia voltado ao Rio, vindo de Curitiba com a família depois de 3 ou 4 anos. Um começo de noite. Odair José desceu de seu apartamento com o violão no ombro, de camisa xadrêz com mangas enroladas, calças boca-de-sino, colar de prata e óculos escuros.

Acho que falei um "oi Odair", perguntei onde ele ia e ouvi um "aeroporto". Era nosso vizinho. Meus preconceitos de classe média e a idade de delumbramento não permitiam que eu entendesse aquele artista.

Só quase trinta anos depois é que pude entender. Simone e eu estávamos conversando sobre música e falamos de Odair José porque ele foi o artista mais censurado na época da ditadura. É que a simplicidade popular de suas canções dava conta dos temas complicados para aqueles tempos bicudos: exclusão social, racismo, homosexualismo, drogas, prostituição, traição conjugal... Então, numa mesa uns três metros da nossa, no bar da dona Judi, um cara levantou-se e pediu para sentar-se com a gente. Ele era fã de Odair José e cumprimentou-me com muita admiração porque eu conhecia o Odair.

Dias depois dessa noite, remoendo o acontecido, acho que entendi a arte de Odair José. As letras de suas canções são românticas, mas de um romantismo imerso nas tragédias reais do povo. Amores colhidos nos escombros do cotidiano da realidade popular, como sua negação. Construídos como um desafio romântico contra as tragédias reais da vida.

Adorno afirmou que a indústria cultural empresta elementos estéticos das artes para sua auto-reprodução como produtora de mercadorias culturais. Um desses empréstimos ela faz ao trágico. A tragédia grega era a negação do mito como afirmação da vontade humana. A tragédia na indústria cultural é a dominação cultural das massas, uma dominação de classes disfarçada de cultura, onde a barbárie social é vendida como doses de ameaça à subversão da ordem. Como um Datena na TV.

Antes de Marx os economistas  já haviam estabelecido que os assalariados tiravam do produto social apenas o necessário para a reprodução de sua força de trabalho. A música de Odair José é o romantismo popular que sai do trágico para afirmar-se. O cara que casa com a prostituta (Eu vou tirar você deste lugar) e tantas outras letras com essa sua marca, são soluções populares para a realidade de suas próprias vidas, criadas com os instrumentos de sua própria cultura, com o salário cultural que o capitalismo paga às massas para sua reprodução espiritual.

Odair José, como outros artistas populares, consegue romper o sistema da indústria cultural com suas subversões conceituais, criando uma espécie de mais-valia semântica que fica no ar como um vírus em propagação. É preciso apropriar-se dela.

Hoje no jornal Bom dia Brasil a Globo levou Odair José ao ar. Os apresentadores, com um sorriso não contido de sarcasmo anunciaram a novidade: Odair José era moda novamente, cantado por Zéca Balero e outros da MPB. A cena foi gravada no Viaduto do Chá em São Paulo, com o compositor cantando com populares que tinham sua músicas na ponta da lingua.

Não precisamos dizer que a Globo não estava lançando um novo compositor popular. Como um dos gigantes da indústria cultural, do alto de sua posição dominante ela mandou seu recado, dizendo que a boa arte reproduz a vida como ela é, e que os artistas supostamente mais equipados culturalmente estavam aprendendo essa lição...

Mas sem saber, a arte de Odair José afirma a realidade dominante para negá-la. Na mercadoria cultural vive escondido o sentido de sua destruição.


Julio Dias

sábado, 23 de junho de 2012

A torta de amoras e a felicidade técnica


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Entre tantos textos interessantes do pensador alemão Walter Benjamin, Torta de amoras e Figos frescos falam da diferença visceral que existe entre comer e devorar. Discorre sobre a devoração compulsiva de uma torta de amoras e o afundar de dentes num figo maduro. Fala do prazer da gula como vivência humana, como a dimensão arrebatadora de apropriar-se das coisas boas da vida frente à conduta comportada e socialmente programada de alimentar-se.

Benjamin viveu no início do século passado. Seu tempo foram os anos da República de Weimar, da ascensão do nazismo, do stalinismo e da depressão econômica dos anos de 1930.

Suas preocupações e a energia de sua vida ele as dirigiu para a historia, mas não para seus grandes feitos oficiais e toda a sua parafernália de heróis, datas e períodos. Seu horizonte era o homem do tempo  presente procurado na historia à contra-pelo, para usar uma expressão também sua.

Talvez nossos dias testemunhem um tipo de alegria sistêmica como em nenhuma outra época. Claro que o observador sempre está sujeito a super-dimensionar o seu tempo, mas a felicidade inscrita nas conversas e estampada nos nossos rostos quando falamos do consumo das tecnologias atuais de uso pessoal mostra a repetição, numa escala impressionantemente superior, dos ciclos fantasmagóricos da indústria cultural esmiuçados por Adorno.

O conceito de mercadoria definido por Marx como a categoria mais elementar do capitalismo, como a forma social a partir da qual a produção e a reprodução social se realizam no capitalismo, é empregada por Adorno para investigar o funcionamento da cultura de massas produzida pelas grandes corporações.

Este início do século 21 fez da internet, dos tablets e dos celulares de última geração não apenas símbolos efêmeros da afirmação aterradora da realidade existente, mas uma parte cada vez mais inseparável do ser humano, que o liga a partir da grande rede a uma memória onipresente, ao mesmo tempo ego e super-ego. Um controle do indivíduo sobre a realidade, por estar nela, em seu tempo. Um controle da realidade sobre o indivíduo. O segundo reduz o primeiro à mera ilusão.

As mercadorias que mediam as relações entre os homens, impedindo um relacionamento humano direto, e que agora ligam as pessoas em tempo real à grande memória mercantil, cultural e científica que o mundo reproduz incessantemente para reafirmar-se a si próprio como única realidade possível.

A alegria conectiva parece já constituir-se como uma parte do comportamento humano. Seus dispositivos de conexão já se assemelham a um orgão virtual do organismo. A felicidade fácil das maravilhas da tecnologia não se mostra como verdadeiramente é  num primeiro olhar. É preciso atenção aos seus arroubos e razões para entendermos que ela é a negação da verdadeira alegria humana desinteressada, e que por trás desses monumentos de cultura tecnológica está a barbárie como monumento da historia humana, no trabalho alienado, no lixo tecnológico, e na gargalhada de uma alegria que passa longe de perceber tudo isso, repetitiva  e fechada em si mesma como os signos da linguagem da máquina.

A devoração da torta de amoras é uma dimensão humana que deve ser recuperada como afirmação do prazer. É sublimação da fome pela gula, como o romance é sublimação do sexo para sua consumação, como os momentos preliminares que a música prepara para o desenlace do tema.

A compulsão da gula é um desafio atávico contra a dominação do trabalho, da técnica e da cultura sobre o homem. É a revolta do animal humano contra a brutalidade da sua historia.


Julio Dias