sábado, 28 de janeiro de 2012

Procurando uma ideia

                                                                                                                                                          

O pensamento é uma coisa no mínimo curiosa. Tivemos a idéia de pensar numa ideia, e a partir dela desenvolvermos uma boa historia.
Conversamos sobre como poderia ser ao mesmo tempo um desafio, uma aventura e um grande barato usar a imaginação desenvolvendo uma historia bem contada, interessante, envolvente, com aventura, coisas inesperadas e talvez até engraçadas.
Foi ontem de noite que essa historia começou. E agora,quando começamos a escrevê-la, não temos ainda qualquer ideia para darmos o pontapé inicial.
Por isso resolvemos começar essa nossa historia assim mesmo, sem nenhuma ideia, senão a primeira, a ideia de termos uma ideia...
 Assim, de cara, isso pode parecer um absurdo, principalmente para quem tem a ideia fixa de achar que se você não tem nada para contar é melhor ficar calado, e muito menos pensar em tentar escrever alguma coisa... Como é, mesmo?! Ah, sim... boca fechada não entra mosca...
Mas o que aconteceu foi que de tanto pensarmos numa ideia, falamos de várias delas, que foram passando pelas nossas cabeças, mas que logo concluímos que não serviam, que não iam dar em nada, não iriam pra frente, e muito menos dariam historias interessantes para serem contadas.
Foi então que de tanto pensarmos em idéias que íamos logo deixando de lado, tivemos num estalo uma certa ideia: na falta de idéias interessantes, restava um caminho, que era falarmos porque cada uma dessas idéias que fomos descartando não nos pareciam interessantes. E começamos por ai.
Pensamos em falar sobre as ideias dos outros, mesmo sem podermos saber com certeza o que estariam pensando naquele momento.
Está claro que nos referíamos a pessoas conhecidas, e assim não seria muito difícil que a partir de suas personalidades próprias conseguíssemos desenvolver idéias que elas pudessem estar pensando naquele momento... Mas logo chegamos a duas conclusões.
A primeira foi que se nós dois não estávamos conseguindo ter idéias próprias, que já estivessem aqui dentro das nossas cabeças, seria ainda mais difícil plantarmos idéias nas cabeças de outros. E cá entre nós, estaríamos assinando atestado de falta de imaginação.
A outra conclusão foi que ficar inventando idéias para os outros poderia acabar em confusão, e essa sim foi decisiva pra abandonarmos a tal ideia.
Passou pelas nossas cabeças a ideia de vazio, como cabeças vazias de idéias. Conversamos muito sobre isso. Sobre a mídia como grande produtora de idéias que passam a invadir a cabeça de todos nós com tanta força que muitas vezes chegamos à conclusão de que não temos mesmo idéias próprias...
Mas ai achamos que o papo ficaria muito filosófico, cabeça demais, parecendo que saiu tudo da ideia de um pai com 50, e nada da do filho com 14. E desistimos.
Não vamos negar, não seria justo: pensamos em sexo. Mas logo nos tocamos de que não tínhamos a mínima condição de fazer algo razoável nessa matéria, que se aproximasse um pouquinho que fosse da realidade ou de tudo que rola na internet. Partimos pra outra.
Também rolou aventuras e até ficção científica. Mas depois das nossas viagenzinhas, caímos na real. A ciência, a tecnologia e os efeitos especiais de hoje fariam nossa imaginação parecer coisa pra criança.
Enfim, pensamos sobre tantas idéias que ficaríamos por aqui parágrafos e mais parágrafos... Mas agora mesmo acabamos de pensar numa coisa que nos faz reafirmar a primeira frase desta historia, de que o pensamente é uma coisa curiosa mesmo. Pensamos sobre tantas coisas sem termos nenhuma ideia boa na cabeça... Imaginem então o que faríamos com uma boa ideia.
E, mais importante, pesquisamos e descobrimos que a filosofia começou assim. Livres de ocuparem-se com coisas práticas certos homens começaram a pensar sobre o próprio pensamento e assim deram início ao mais profundo e verdadeiro de todos os conhecimentos. Longe de nós uma pretensão dessas, mas enfim...

Gabriel Dias
Julio Dias

Janeiro de 2012  


terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A filosofia do Silva




Tem idéias que a gente tem de repente, assim, do nada. Ninguém aprende a andar por teorias. Simplesmente um dia andamos. As idéias são assim. Elas vêm, e ponto.

Acontece de variar de pessoa pra pessoa o lugar onde se tem ideias.


Comigo esse lugar é o bar. Não todo bar, mas só esse ou aquele. Digamos um ou dois, no máximo, e em certas épocas. E depois passando talvez a ser aquele outro e mais este, de onde acabo de sair faz pouco tempo, correndo para casa a fim de não perder a ideia, antes de passá-la da cabeça para as letras.

Assim, daqui por diante, já é outro quem fala, como falei até aqui eu, na primeira pessoa. Um outro que veio na ideia, portanto é um pouco eu e um pouco outros, dos bares e de fora deles, que a vida teve o capricho ou o despropósito de me fazer viver. Até logo ou até o fim da historia dessa ideia de bar. Em tempo: mudo de assunto mais não de parágrafo, para que o nosso conviva possa logo tomar a palavra já no próximo. E se vocês acharem que o que vem por diante é uma historia dentro de outra história, não se preocupem. É isso mesmo. Vejamos.

Peguei caminho da rua que nem doido. Tinha acabado de brigar em casa, por besteira, e tava puto com a briga e com a besteira.

Tomei fôlego e direção. Caminho do bar. A coisa era de aborrecer até gente sem as idéias no lugar. Fui andando, com o pensamento fuzilando. O que uma coisa tem haver com outra coisa? Uma coisa é uma coisa, outra coisa...     

Já no boteco, pedi uma. Cumprimentei um e outro, que conhecia, e respirei um pouco de alívio. Mas aquele pensamento não me largava. A briga por besteira, que já perecia que não era tanta besteira assim. Uma coisa perdida foi achar justamente o motivo do sumiço nos meus expedientes do escritório, que é como eu chamo o bar que gosto de ir. Eu tava com muita raiva.

E continuei pensando. Se não bastasse isso, ainda tive que ouvir uma coisa assim: você não tem um sentido na vida! Sua filosofia é o bar! Ai não aguentei, e respondi, pensando que ia ter a última palavra: Isso, minha filosofia é o bar! Qual o problema? Virei às costas e ouvi: tá bom então. Conta ai como é essa filosofia. Ai foi que fiquei mais bravo, porque não tinha uma resposta.

Tomei mais umas, conversei, ouvi um monte de historias, e até esqueci um pouco do acontecido. Já lá pelo final do expediente lembro que perguntei a alguém: sabe o que é uma filosofia? E tive essa resposta: são pensamentos, explicações sobre o sentido da vida... Não é que eu não tivesse na cabeça uma idéia dessas, claro que tinha, mas queria escutar dos outros, que talvez ouvisse coisa mais funda do que já sei... Logo voltei pra casa, já final de tarde, dia de domingo.

Não falei mais nada que fosse ligado com a confusão. A noite chegou e tudo correu em paz, de acordo com isso que chamam rotina, a vida vivida assim corrida e levada pelo tempo com as coisas que a gente sempre tem que fazer.

Dia seguinte, a ideia voltou. Ia cumprindo as tarefas do trabalho, e ela sempre lá: minha filosofia de vida... Num estalo resolvi sair um pouco mais cedo do trabalho e passar numa biblioteca pública antes do almoço.

Fui. Cheguei lá, entrei e falei pra funcionária: quero ver livros de filosofia. E eu fui seguindo ela por aqueles corredores cheios de livros que não acabavam mais. Num lugar ela parou, virou pra mim e disse: a seção de filosofia está aqui. Que assunto ou autores o senhor quer consultar? E eu disse: não sei, são tantos?! Ela insistiu em me ajudar. Falou: diga o que o senhor procura que talvez eu consiga achar... Ai enchi o peito e mandei: quero ler pra pensar e chegar numa filosofia minha...

E aquelas palavras saíram assim meio dum jeito de doutor. E a moça olhou pra mim com cara de deboche e me deixou lá no meio daquele labirinto. Eu não perdi a pose, passei a mão num livro qualquer sobre filosofia, fiz a tal da ficha de empréstimo e me mandei pra casa atrás da bóia.

Os dias foram passando. Lia sempre um pouco nas andanças do ônibus, mas confesso que tive muitas dificuldades com as idéias dos filósofos, no início. Mas fui lendo. O ônibus balançava e a vista acompanhava a linha e o pensamento...

Um dia tive uma luz quase filosófica. Entrei numa lan house e mandei ver: grandes filósofos e suas idéias. E li bastante.

Depois pensei que podia encontrar um jeito de aprender mais rápido as coisas da filosofia, pra ter conhecimento que bastasse pra pensar e chegar a uma filosofia muito minha, e mostrar em casa que eu tinha ideias sobre a vida. Pensei por dias e cheguei à conclusão de que a filosofia, como qualquer trabalho, também devia de ter as suas coisas próprias os seus jeitos de pensar organizar e fazer, trabalhar. Mas quais eram essas coisas eu não sabia.

Não demorou até que sem querer li no jornal a palavra: categoria. Era sobre futebol, mas não deu outra. Voltei na lan e pronto. Logo achei uma batelada de respostas que tava procurando, chamadas categorias filosóficas.

E não era pouca coisa: ser, natureza, não ser, verdade, razão, tempo, espírito, matéria, ideia, tudo, nada, princípio, fim, meios... A lista era grande, mas era coisa muito interessante, que forçando um tanto a mente, se não pegava logo, depois vinha o entendimento, ou pelo menos um pouco que fosse dele.

E continuei lendo o livro, e as folhas que tinha imprimido, pensando cada dia mais. Até já sabia muita coisa, mas como é que vai ser essa minha tal filosofia? Ainda não sabia. Insisti, e comprei um dicionário pequeno pra ajudar com as palavras ditas técnicas.

De vez em quando a mulher estranhava que eu não tava na sala vendo TV. Perguntava: tá fazendo o que ai no quarto Silva? Vem pra cá ficar com a gente, dizia. Dali um pouco eu ia, mas sempre que dava me empenhava na leitura e nos pensamentos.

Não é que eu não soubesse já alguma coisa, pouca, sobre filosofia. Sabia que teve o Sócrates na Grécia antiga, aquele outro que escreveu penso, logo existo, e também um barbudo, um tal de Marx, que defendia a classe dos trabalhadores. Mas as filosofias mesmo, desses e dos outros eu não sabia.

Agora é que eu estava conhecendo, e entendendo alguma coisa. Eu já andava até achando que via as coisas de um jeito novo, que não sabia muito bem como era. Mas qual seria a minha filosofia?

Até que um dia a coisa saiu quase pronta da ideia. Pensei e resolvi: ...bem, já que ela falou que a filosofia da minha vida era o bar, então é mesmo sobre o bar que eu vou filosofar.

E peguei aquelas chamadas categorias e organizei quase todas elas com o pouco que tinha aprendido.

O rascunhão saiu lá mesmo, numa mesa do escritório. Contei com a ajuda das minhas anotações das categorias filosóficas, do dicionário e de certo pensante que sempre dá expediente por lá, que não cansa de repetir que sabe que nada sabe e que garantiu que ia escrever essa historia de bar.

Ficou assim, rápido como a primeira dose e profundo como a saideira.

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Do princípio e do fim: o princípio existe, pois se tudo fosse nada, o nada seria tudo. Mas não principia pelo comércio, senão antes pelo tédio que dominando do exterior leva as pessoas ao bar. O fim é superação do tédio. A reincidência é um princípio sem fim. A cirrose é o início do fim. Bar, o fim  que justifica os meios.

Espaço e tempo: bar é o espaço que ocupamos pra passar o tempo. Se o tempo é curto, o gole é longo. Se o tempo é longo e a grana também, o porre é certo. Sendo os espaços grandes ou pequenos, o tempo de permanência no bar não se altera.

Ser e não ser: no bar você pode ser até que não seja mais, ou porque não pagou a conta ou porque está no bar errado e na hora errada. Entretanto há os que só são no bar, onde tornam-se donos de uma razão que não habita o bar. No bar o ser em si é ser para si, a não ser que a grana, a hora ou a ocasião impeçam.

Matéria e movimento: no bar bebe-se e come-se, mas domina o beber. Os corpos, sua matéria, estão quase em total repouso, no máximo vão e voltam do banheiro. As idéias movimentam-se incessantemente: afirmação, negação, contestação, numa corrida ao fundo do copo e daí ao fundo da garrafa. Movimento em nível muito intenso faz voar matéria pra todo lado.

Dos contrários: entra-se seco para sair molhado, são para sair torrado. Tem o gelado e o quente, o doce e o amargo. Há divertidos e chatos, com grana e duros, tem o pago e o pendurado. Os contrários opõem-se, mas em seu movimento circular realizam uma unidade. Bebe-se o possível, paga-se se for possível.

Da razão e da ideia: a única razão sobre o bar a manifestar-se de fora dele, é a de se estar dentro. Se no bar há razões para se defender uma ideia, há também mil razões para se chegar em casa com alguma ideia. A razão é abundante fora do bar e rara dentro dele, onde dominam ideias livres do seu domínio. O bar é a crítica radical da razão prática e da razão pura.

Do espírito: o verdadeiro espírito do bar afirma-se pela negação do trabalho, da seriedade e da matemática, pelo menos do lado de cá do balcão. Mas há os espíritos que pararam de beber porque não captaram tal particularidade. Se você está vendo alma penada, pare de beber, ofereça uma dose pro santo, dê uma mijada e caia fora do bar. Você reviverá das cinzas como Minerva, mas não às tantas da madrugada.

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No dia seguinte, sexta-feira, cheguei tarde em casa e entreguei pra mulher minha filosofia. Ela leu, me olhou bem dentro dos olhos e perguntou: veio do escritório. Eu respondi: não, vim da faculdade de filosofia. Desse dia em diante ela nunca mais falou mal das minhas idas ao escritório... E depois que descobriu e leu essa historia na internet, volta e meia me acompanha no expediente, que ela chama de academia.

Tem vezes que a vida prega peças na gente. Dai começamos a duvidar e achar um saco as historias com final previsível. Hoje acho muito bom que essa que tô agora acabando de contar não tenha terminado assim.

Acabou desse jeito: o tempo foi passando e a mulher deu de ler tudo que podia de filosofia. Todo tipo de textos da internet e livros. Dos gregos antigos até esses quase de hoje em dia, passando pelos medievais, modernos e não sei mais o que.

Não demorou muito e eu senti duas grandes mudanças que foram acontecendo assim sem pedir licença.

A primeira foi que as despesas dela com os estudos da filosofia passaram a dar grandes mordidas no orçamento de casa, o que teve que ser compensado com economia no material do escritório.

A outra foi que quando eu chegava em casa depois dos expedientes, tinha que estar em condições de conversar sobre coisas cada vez mais complicadas da filosofia. Tanta coisa que até hoje me confundo: materialismo, idealismo, racionalismo, marxismo, positivismo, formalismo, estruturalismo, funcionalismo, existencialismo e tantos outros ismos. Então só ia até aquela calibragem de meio de caminho, que deixa a gente assim um tanto filosófico, com um pé já lá adiante, mas com o outro bem aqui, firme na realidade.

Um dia desses, no escritório, tomando a derradeira, já no limite da dosagem e da hora, contei isso pro nosso pensante, aquele mesmo que ajudou a escrever a minha filosofia. Logo que ouviu, ele deu uma grande gargalhada e falou bem alto: Porra Silva! Você pensando que tinha enrolado a mulher com a tal da filosofia! E no final é ela que usa filosofia pra te controlar!

Eu escutei e ri também. Mas não contestei. Calei e dei outra risada, muda, sem mostrar os dentes, só pra mim mesmo. E fiquei de boa. Feliz por dentro.

Eu sabia que tinha aprendido com ela, com sua sabedoria, qual o limite daquilo que ela dizia ser a insustentável leveza do ser, o nome de um dos livros que ela tinha vendido no sebo pra ajudar a pagar as despesas da semana com o material de escritório. Como ela diz, se eu fosse o Sartre, ela seria a minha Simone. Ela que sempre me perdoa, pelos excessos e pelas filosofias baratas de botequim.

Oi, desculpem... Estou por aqui de novo só para umas poucas palavras. Lembram, não é, que abri o texto e logo passei a voz à personagem central? Não pretendia voltar e não quero interferir na historia, que é toda dele. Mas como ele me citou numa conversa de bar, resolvi cair aqui de pára-quedas, assim que ele teclou o ponto final, somente para confirmar tudo. Falei exatamente aquilo, e ri muito, como ele relatou. E para quem duvidar dessa historia ou causo que nosso intuitivo e brilhante filósofo acaba de contar, tenho em casa guardada, manuscrita em guardanapos de papel, a filosofia original do Silva.


Julio Dias

Janeiro de 2012